Não tenho resposta para esta pergunta. Mas acho interessante fazê-la. E pensar sobre ela. É claro – e é bom dizer logo no começo – que é importante, significativo e até histórico ter, pela primeira vez, uma mulher na presidência. Como Lula gosta de dizer, “nunca antes neste país” uma mulher ocupou este lugar. Supostamente, se uma mulher é eleita para ocupar o cargo máximo de poder em um país, então qualquer mulher pode ocupar qualquer posto, o que é uma conquista, ainda que na prática não funcione exatamente assim. Mas a pergunta que tenho me feito e que trago para esta coluna é se o fato de uma mulher ocupar a presidência faz alguma diferença por ser uma mulher – e não um homem. Se há um jeito feminino de governar.
Em 1938, pouco antes do início da II Guerra Mundial, a escritora inglesa Virginia Woolf publicou um ensaio em que respondia a um advogado que havia feito a ela a seguinte pergunta: “Como nós podemos evitar a guerra?”. Virginia respondeu a ele num texto corajoso e cáustico chamado “Três guinéus”, no qual relacionou “guerra, tratamento desigual das mulheres e patriarcado”. Logo no início ela já dizia que não existia aquele “nós”. Ainda que pertencessem à mesma “classe instruída”, ele era um homem e ela era uma mulher. E as mulheres não faziam guerra. A maioria dos homens sentia “uma glória, uma necessidade e uma satisfação em lutar” que a maioria das mulheres não sentiria. O texto desagradou até mesmo seus amigos mais íntimos, assim como uma parcela das feministas. A escritora, que não viu o conflito acabar porque acabou com a própria vida antes, afirmou que a guerra tinha um gênero – e este gênero era masculino. Para Virginia, era tarefa das mulheres emancipar os homens da violência para que a paz e a liberdade pudessem ser alcançadas. Tal feito só seria possível “destruindo os atributos masculinos, a violência e a idolatria do poder”.
Quando li esse ensaio, fiquei pensando no que milhares de mulheres ao longo da história já pensaram e continuam pensando: se há um jeito feminino de fazer política. Era outra época – e outro contexto. Mas ainda que muitos – e eu mesma – possam discordar das conclusões de Virginia Woolf, a questão é atual. E mesmo o movimento feminista tem dado diferentes respostas a ela. Lembrei desse ensaio ao me perguntar, a partir da eleição da primeira presidenta do Brasil, se há características de gênero que tornam o governo de uma mulher diferente do governo de um homem.
Se procurarmos na história das democracias modernas a diferença que mulheres fizeram no governo por ser mulheres não encontraremos nada no legado de Margaret Thatcher ou Golda Meir, por exemplo. Sobre esta última, aliás, David Ben-Gurion, o primeiro chefe de governo de Israel, disse em tom de elogio: “Golda Meir é o único homem do meu gabinete”. Já Thatcher foi “a dama de ferro” dos britânicos. Mesmo olhando para nossa época, nem governantes como Michelle Bachelet, ex-presidente do Chile, ou Angela Merkel, a atual chanceler da Alemanha, ou mesmo Cristina Kirchner, da Argentina, independentemente de sua competência, nos fazem supor que há “um jeito feminino de governar”. O mesmo vale para as governadoras e prefeitas do Brasil.
Há algum significado de conteúdo, para além do ineditismo, na ascensão da primeira mulher ao Planalto? Em busca de pistas para esta questão revisitei o que foi dito sobre a condição feminina de Dilma Rousseff ao longo da campanha eleitoral. Foi um percurso revelador.
Logo no lançamento oficial de sua candidatura, em junho, a própria Dilma tratou de marcar o ineditismo de uma mulher na presidência do Brasil como estratégia de marketing eleitoral. Ela disse: “Chegou a hora de uma mulher governar este país. Nós, mulheres, nascemos com o sentimento de cuidar, amparar e proteger. Somos imbatíveis na defesa da nossa família e dos nossos filhos”. Dilma, possivelmente aconselhada por Lula e por marqueteiros, anunciava ali as supostas vantagens de uma mulher para governar um país.
Primeiro, é arriscado afirmar que “cuidar, amparar e proteger” seja um sentimento inato das mulheres. Teríamos de acreditar que todas as mulheres guardam dentro de si desde a concepção o ímpeto de cuidar, amparar e proteger. E que todos os homens, por sua vez, não possuiriam este mesmo ímpeto. Em seu discurso, o “cuidar” está associado à família e aos filhos. Isso dito numa época em que uma parcela das mulheres escolhe não ter filhos e a parcela que opta por tê-los divide com o pai das crianças até mesmo a tarefa de trocar fraldas soa ultrapassado. É claro que há muitos homens que ainda acham que algumas tarefas e cuidados não lhes pertencem, mas estes são vistos cada vez mais como espécimes de um modelo arcaico.
Como Dilma defende que estes são os melhores atributos para uma governante, ela transforma o Brasil numa casa de família e nós todos em seus filhos. E Lula explicita ainda mais: “A palavra não é governar, mas cuidar”. Mais tarde Dilma dirá que vai “cuidar como uma mãe do povo brasileiro”. Logo, se acreditarmos nas palavras de Dilma, uma mulher não governa – cuida. E o melhor que uma mulher pode fazer como presidente é ser mãe.
Mais: segundo este discurso, ao governar ela transforma o público em privado – e cidadãos autônomos em crianças que precisam ser cuidadas, protegidas e eventualmente corrigidas. Em seguida, Lula esclarece que, sim, ela será mãe. Mas não de todos: apenas dos mais pobres entre nós. Dilma será a “mãe dos pobres”. Portanto, os pobres teriam, além da pobreza, o ônus de serem tratados como crianças numa relação desigual e baseada no afeto, cujas benesses viriam de seu bom comportamento nas urnas – e não cidadãos com direitos garantidos pela Constituição que legitimaram um governante com seu voto consciente por um período determinado.
Colocado dessa maneira – ainda que seja apenas discurso de marqueteiro, porque acredito e espero que Dilma seja mais inteligente que isso –, uma mulher na presidência seria não um avanço, mas uma regressão a um populismo tosco, ainda que matriarcal. A certa altura, Lula chegou a dizer que votar em Dilma era dar uma chance (à minha, à sua), à nossa mãe. E a seguinte letra foi cantarolada num jingle: “Deixo em tuas mãos o meu povo e tudo o que mais amei/ mas só deixo porque sei que vais continuar o que fiz/ o país será melhor e meu povo mais feliz/ do jeito que sonhei e sempre quis/ As mãos de uma mulher vai nos conduzir/ O meu povo ganhou uma mãe que tem um coração que vai do Oiapoque ao Chuí/ deixo em tuas mãos o meu povo”.
Depois do pai, a mãe. Depois da grande mulher atrás do grande homem evoluímos para o grande homem atrás da grande mulher. Ou seria o mito de Pigmalião aplicado à política?
Se levarmos a sério este discurso – e acho que precisamos levar porque foi também com ele que pela primeira vez uma mulher se tornou presidente do Brasil –, os principais trunfos de uma mulher na política e na administração pública seriam atributos colocados como inatos – e não conquistados com estudo, trabalho e esforço. E atributos ligados à biologia, à vocação reprodutiva da mulher. É por parir que uma mulher supostamente seria uma boa governante.
Em artigo recente, o teólogo Leonardo Boff desenvolveu a tese de que há uma ruptura entre o trabalho e o cuidado – e um predomínio do homem sobre a natureza e a mulher. Há, segundo ele, “uma urgência de feminilizar as relações” e, para isso, é preciso “reintroduzir em todos os âmbitos o cuidado”. Por ser mulher, Dilma seria, na opinião de Boff, capaz de fazer esta síntese. Acompanhe o raciocínio: “Ela poderá unir as duas dimensões do trabalho que busca racionalidade e eficácia (a dimensão masculina) e do cuidado que acolhe o mais pobre e sofrido e projeta políticas de inclusão e de recuperação da dignidade (dimensão feminina). Ela possui o caráter de uma grande e eficiente gestora (seu lado de trabalho/masculino) e ao mesmo tempo a capacidade de levar avante com enternecimento e compaixão o projeto de Lula de cuidar dos pobres e dos oprimidos (seu lado de cuidado/feminino). Ela pode realizar o ideal de Gandhi: ‘política é um gesto amoroso para com o povo’”.
Aqui, vale a pena observar quais são as qualidades atribuídas a cada gênero. Ao masculino, a racionalidade, a eficácia e o “lado trabalho”. Ao feminino, o cuidado, a ternura, a capacidade de acolhimento, a compaixão e a atitude amorosa. Se concordarmos com esta divisão de atributos correspondentes a cada gênero, Dilma Rousseff está apta a governar porque sintetiza o masculino e o feminino em seu corpo de mulher. Poderíamos pensar então que é preciso ser mais do que uma mulher para governar. É necessário ser um tipo particular de mulher, uma mulher com um homem dentro dela.
Mas vamos seguir adiante. Quando Dilma foi entrevistada no Jornal Nacional, Lula achou que o apresentador William Bonner foi duro demais. Ao reclamar, o argumento que usou foi: “Eu, que conheço debates há muitos anos, esperava que pelo fato de você ser mulher e ser candidata, o entrevistador tivesse um pouco mais de gentileza". Deu a Dilma uma rosa por ter mantido “a calma e a tranquilidade” durante a entrevista. Se acreditarmos neste discurso, teríamos de ficar preocupados com as futuras e inevitáveis negociações duras que nossa presidenta terá de enfrentar dentro e fora do país. E sugerir que os chefes de Estado levem rosas nas negociações com as governantes do mundo.
O mais curioso é que Dilma era conhecida como uma administradora dura. As palavras usadas para descrevê-la eram “truculenta”, “autoritária”, “mandona”, “forte”, pouco afeita a conciliações. Sua voz grossa ajudava a compor esta imagem. Para os preconceituosos – e isso ficou explícito nos ataques na internet –, ela seria uma “mulher masculinizada”. Escutei estarrecida, mais de uma vez, mulheres comentarem que Dilma não as representaria porque não era, “como poderiam dizer, uma mulher-mulher”.
Ao começar a ser esculpida como candidata, Dilma passou por uma espécie de “feminilização”, tomando por modelo uma ideia de mulher mais compatível com o tempo de nossas avós. Submeteu-se a cirurgias plásticas e tratamentos estéticos, mudou o cabelo, trocou o guarda-roupa, modulou a voz. Tudo no sentido de transformá-la numa mulher mais “feminina”, numa candidata mais suave e palatável, em alguém que o povo pudesse identificar com uma maternidade tradicional. Submeteu-se a uma metamorfose difícil – precisava se fragilizar para se adequar a uma ideia muito específica de feminino e se manter forte para convencer como futura governante. Ao submeter-se a isso acredito que Dilma Rousseff fez um desserviço às mulheres deste país. Por que Dilma não poderia ser uma mulher como Dilma efetivamente é? Por que Dilma precisou ser outra para convencer como mulher?
Vale a pena voltar a Virginia Woolf e a quase um século atrás. Numa conferência que a escritora fez em 1931, para as mulheres reunidas no Congresso da National Society Women’s Service, em Londres, ela defendeu o “matricídio”. Simbólico, obviamente. Para se tornar escritora e uma mulher com expressão pública, ela confessa que precisou “matar” a sua mãe, o modelo de uma mulher que era só bondade, generosidade, compreensão, doçura e beleza, que se dedicava de corpo e alma aos outros, confortava, pacificava, se sacrificava. Como diz uma de suas biógrafas, Nadia Fusini, precisou matar a imagem que é a base da hagiografia feminina vitoriana, o “anjo do lar”.
Nesta campanha, o que assistimos – alguns de nós bem espantados – foi exatamente a volta do “anjo do lar”, mas aplicada à política e transferida ao espaço público, o que é bem curioso. Esta imagem do feminino, aliada a atributos identificados como masculinos, como “racionalidade, eficácia e um lado trabalho”, supostamente tornavam Dilma Rousseff uma candidata qualificada e a tornariam uma boa presidente para o Brasil. E aqui não estou analisando em que medida esta embalagem funcionou ou não – apenas apontando as escolhas que foram feitas para definir o feminino e suas vantagens na política e na governança.
Chocadas com o slogan “Pátria livre, Pátria Mãe”, algumas feministas ligadas ao PT lembraram que não bastava ser mulher, era preciso se comprometer com uma agenda de políticas públicas relacionadas às mulheres. É discutível, como tudo. Mas se acreditarmos que esta é uma diferença significativa entre o governo de um homem e de uma mulher, Dilma recuou de sua posição sobre o aborto na primeira ameaça de perder votos de parte dos evangélicos e dos católicos. Não hesitou em assinar uma carta comprometendo-se a não alterar a legislação do aborto nem “promover nenhuma iniciativa que afronte a família”. A descriminalização do aborto tem sido uma luta histórica das feministas brasileiras.
Completado o percurso, não há nada que nos esclareça se faz alguma diferença ter uma mulher – por ser mulher – na presidência do Brasil. O tratamento estapafúrdio do feminino – e o que Lula e os marqueteiros fizeram da mulher que é Dilma Rousseff, assim como o que ela deixou fazer consigo mesma – só nos revelam que foi uma campanha de baixo nível – em todos os sentidos. Resta-nos torcer que a indigência dos argumentos sobre o feminino seja apenas obra de marqueteiros, não crença real de quem tem a tarefa de comandar o país. Em certo momento, juro, temi topar com algum slogan do tipo “Serra é de Marte, Dilma é de Vênus”. Por sorte, acabou. E agora, talvez, possamos descobrir quem é esta mulher chamada Dilma Rousseff.
Tomara que a gente goste.
Em 1938, pouco antes do início da II Guerra Mundial, a escritora inglesa Virginia Woolf publicou um ensaio em que respondia a um advogado que havia feito a ela a seguinte pergunta: “Como nós podemos evitar a guerra?”. Virginia respondeu a ele num texto corajoso e cáustico chamado “Três guinéus”, no qual relacionou “guerra, tratamento desigual das mulheres e patriarcado”. Logo no início ela já dizia que não existia aquele “nós”. Ainda que pertencessem à mesma “classe instruída”, ele era um homem e ela era uma mulher. E as mulheres não faziam guerra. A maioria dos homens sentia “uma glória, uma necessidade e uma satisfação em lutar” que a maioria das mulheres não sentiria. O texto desagradou até mesmo seus amigos mais íntimos, assim como uma parcela das feministas. A escritora, que não viu o conflito acabar porque acabou com a própria vida antes, afirmou que a guerra tinha um gênero – e este gênero era masculino. Para Virginia, era tarefa das mulheres emancipar os homens da violência para que a paz e a liberdade pudessem ser alcançadas. Tal feito só seria possível “destruindo os atributos masculinos, a violência e a idolatria do poder”.
Quando li esse ensaio, fiquei pensando no que milhares de mulheres ao longo da história já pensaram e continuam pensando: se há um jeito feminino de fazer política. Era outra época – e outro contexto. Mas ainda que muitos – e eu mesma – possam discordar das conclusões de Virginia Woolf, a questão é atual. E mesmo o movimento feminista tem dado diferentes respostas a ela. Lembrei desse ensaio ao me perguntar, a partir da eleição da primeira presidenta do Brasil, se há características de gênero que tornam o governo de uma mulher diferente do governo de um homem.
Se procurarmos na história das democracias modernas a diferença que mulheres fizeram no governo por ser mulheres não encontraremos nada no legado de Margaret Thatcher ou Golda Meir, por exemplo. Sobre esta última, aliás, David Ben-Gurion, o primeiro chefe de governo de Israel, disse em tom de elogio: “Golda Meir é o único homem do meu gabinete”. Já Thatcher foi “a dama de ferro” dos britânicos. Mesmo olhando para nossa época, nem governantes como Michelle Bachelet, ex-presidente do Chile, ou Angela Merkel, a atual chanceler da Alemanha, ou mesmo Cristina Kirchner, da Argentina, independentemente de sua competência, nos fazem supor que há “um jeito feminino de governar”. O mesmo vale para as governadoras e prefeitas do Brasil.
Há algum significado de conteúdo, para além do ineditismo, na ascensão da primeira mulher ao Planalto? Em busca de pistas para esta questão revisitei o que foi dito sobre a condição feminina de Dilma Rousseff ao longo da campanha eleitoral. Foi um percurso revelador.
Logo no lançamento oficial de sua candidatura, em junho, a própria Dilma tratou de marcar o ineditismo de uma mulher na presidência do Brasil como estratégia de marketing eleitoral. Ela disse: “Chegou a hora de uma mulher governar este país. Nós, mulheres, nascemos com o sentimento de cuidar, amparar e proteger. Somos imbatíveis na defesa da nossa família e dos nossos filhos”. Dilma, possivelmente aconselhada por Lula e por marqueteiros, anunciava ali as supostas vantagens de uma mulher para governar um país.
Primeiro, é arriscado afirmar que “cuidar, amparar e proteger” seja um sentimento inato das mulheres. Teríamos de acreditar que todas as mulheres guardam dentro de si desde a concepção o ímpeto de cuidar, amparar e proteger. E que todos os homens, por sua vez, não possuiriam este mesmo ímpeto. Em seu discurso, o “cuidar” está associado à família e aos filhos. Isso dito numa época em que uma parcela das mulheres escolhe não ter filhos e a parcela que opta por tê-los divide com o pai das crianças até mesmo a tarefa de trocar fraldas soa ultrapassado. É claro que há muitos homens que ainda acham que algumas tarefas e cuidados não lhes pertencem, mas estes são vistos cada vez mais como espécimes de um modelo arcaico.
Como Dilma defende que estes são os melhores atributos para uma governante, ela transforma o Brasil numa casa de família e nós todos em seus filhos. E Lula explicita ainda mais: “A palavra não é governar, mas cuidar”. Mais tarde Dilma dirá que vai “cuidar como uma mãe do povo brasileiro”. Logo, se acreditarmos nas palavras de Dilma, uma mulher não governa – cuida. E o melhor que uma mulher pode fazer como presidente é ser mãe.
Mais: segundo este discurso, ao governar ela transforma o público em privado – e cidadãos autônomos em crianças que precisam ser cuidadas, protegidas e eventualmente corrigidas. Em seguida, Lula esclarece que, sim, ela será mãe. Mas não de todos: apenas dos mais pobres entre nós. Dilma será a “mãe dos pobres”. Portanto, os pobres teriam, além da pobreza, o ônus de serem tratados como crianças numa relação desigual e baseada no afeto, cujas benesses viriam de seu bom comportamento nas urnas – e não cidadãos com direitos garantidos pela Constituição que legitimaram um governante com seu voto consciente por um período determinado.
Colocado dessa maneira – ainda que seja apenas discurso de marqueteiro, porque acredito e espero que Dilma seja mais inteligente que isso –, uma mulher na presidência seria não um avanço, mas uma regressão a um populismo tosco, ainda que matriarcal. A certa altura, Lula chegou a dizer que votar em Dilma era dar uma chance (à minha, à sua), à nossa mãe. E a seguinte letra foi cantarolada num jingle: “Deixo em tuas mãos o meu povo e tudo o que mais amei/ mas só deixo porque sei que vais continuar o que fiz/ o país será melhor e meu povo mais feliz/ do jeito que sonhei e sempre quis/ As mãos de uma mulher vai nos conduzir/ O meu povo ganhou uma mãe que tem um coração que vai do Oiapoque ao Chuí/ deixo em tuas mãos o meu povo”.
Depois do pai, a mãe. Depois da grande mulher atrás do grande homem evoluímos para o grande homem atrás da grande mulher. Ou seria o mito de Pigmalião aplicado à política?
Se levarmos a sério este discurso – e acho que precisamos levar porque foi também com ele que pela primeira vez uma mulher se tornou presidente do Brasil –, os principais trunfos de uma mulher na política e na administração pública seriam atributos colocados como inatos – e não conquistados com estudo, trabalho e esforço. E atributos ligados à biologia, à vocação reprodutiva da mulher. É por parir que uma mulher supostamente seria uma boa governante.
Em artigo recente, o teólogo Leonardo Boff desenvolveu a tese de que há uma ruptura entre o trabalho e o cuidado – e um predomínio do homem sobre a natureza e a mulher. Há, segundo ele, “uma urgência de feminilizar as relações” e, para isso, é preciso “reintroduzir em todos os âmbitos o cuidado”. Por ser mulher, Dilma seria, na opinião de Boff, capaz de fazer esta síntese. Acompanhe o raciocínio: “Ela poderá unir as duas dimensões do trabalho que busca racionalidade e eficácia (a dimensão masculina) e do cuidado que acolhe o mais pobre e sofrido e projeta políticas de inclusão e de recuperação da dignidade (dimensão feminina). Ela possui o caráter de uma grande e eficiente gestora (seu lado de trabalho/masculino) e ao mesmo tempo a capacidade de levar avante com enternecimento e compaixão o projeto de Lula de cuidar dos pobres e dos oprimidos (seu lado de cuidado/feminino). Ela pode realizar o ideal de Gandhi: ‘política é um gesto amoroso para com o povo’”.
Aqui, vale a pena observar quais são as qualidades atribuídas a cada gênero. Ao masculino, a racionalidade, a eficácia e o “lado trabalho”. Ao feminino, o cuidado, a ternura, a capacidade de acolhimento, a compaixão e a atitude amorosa. Se concordarmos com esta divisão de atributos correspondentes a cada gênero, Dilma Rousseff está apta a governar porque sintetiza o masculino e o feminino em seu corpo de mulher. Poderíamos pensar então que é preciso ser mais do que uma mulher para governar. É necessário ser um tipo particular de mulher, uma mulher com um homem dentro dela.
Mas vamos seguir adiante. Quando Dilma foi entrevistada no Jornal Nacional, Lula achou que o apresentador William Bonner foi duro demais. Ao reclamar, o argumento que usou foi: “Eu, que conheço debates há muitos anos, esperava que pelo fato de você ser mulher e ser candidata, o entrevistador tivesse um pouco mais de gentileza". Deu a Dilma uma rosa por ter mantido “a calma e a tranquilidade” durante a entrevista. Se acreditarmos neste discurso, teríamos de ficar preocupados com as futuras e inevitáveis negociações duras que nossa presidenta terá de enfrentar dentro e fora do país. E sugerir que os chefes de Estado levem rosas nas negociações com as governantes do mundo.
O mais curioso é que Dilma era conhecida como uma administradora dura. As palavras usadas para descrevê-la eram “truculenta”, “autoritária”, “mandona”, “forte”, pouco afeita a conciliações. Sua voz grossa ajudava a compor esta imagem. Para os preconceituosos – e isso ficou explícito nos ataques na internet –, ela seria uma “mulher masculinizada”. Escutei estarrecida, mais de uma vez, mulheres comentarem que Dilma não as representaria porque não era, “como poderiam dizer, uma mulher-mulher”.
Ao começar a ser esculpida como candidata, Dilma passou por uma espécie de “feminilização”, tomando por modelo uma ideia de mulher mais compatível com o tempo de nossas avós. Submeteu-se a cirurgias plásticas e tratamentos estéticos, mudou o cabelo, trocou o guarda-roupa, modulou a voz. Tudo no sentido de transformá-la numa mulher mais “feminina”, numa candidata mais suave e palatável, em alguém que o povo pudesse identificar com uma maternidade tradicional. Submeteu-se a uma metamorfose difícil – precisava se fragilizar para se adequar a uma ideia muito específica de feminino e se manter forte para convencer como futura governante. Ao submeter-se a isso acredito que Dilma Rousseff fez um desserviço às mulheres deste país. Por que Dilma não poderia ser uma mulher como Dilma efetivamente é? Por que Dilma precisou ser outra para convencer como mulher?
Vale a pena voltar a Virginia Woolf e a quase um século atrás. Numa conferência que a escritora fez em 1931, para as mulheres reunidas no Congresso da National Society Women’s Service, em Londres, ela defendeu o “matricídio”. Simbólico, obviamente. Para se tornar escritora e uma mulher com expressão pública, ela confessa que precisou “matar” a sua mãe, o modelo de uma mulher que era só bondade, generosidade, compreensão, doçura e beleza, que se dedicava de corpo e alma aos outros, confortava, pacificava, se sacrificava. Como diz uma de suas biógrafas, Nadia Fusini, precisou matar a imagem que é a base da hagiografia feminina vitoriana, o “anjo do lar”.
Nesta campanha, o que assistimos – alguns de nós bem espantados – foi exatamente a volta do “anjo do lar”, mas aplicada à política e transferida ao espaço público, o que é bem curioso. Esta imagem do feminino, aliada a atributos identificados como masculinos, como “racionalidade, eficácia e um lado trabalho”, supostamente tornavam Dilma Rousseff uma candidata qualificada e a tornariam uma boa presidente para o Brasil. E aqui não estou analisando em que medida esta embalagem funcionou ou não – apenas apontando as escolhas que foram feitas para definir o feminino e suas vantagens na política e na governança.
Chocadas com o slogan “Pátria livre, Pátria Mãe”, algumas feministas ligadas ao PT lembraram que não bastava ser mulher, era preciso se comprometer com uma agenda de políticas públicas relacionadas às mulheres. É discutível, como tudo. Mas se acreditarmos que esta é uma diferença significativa entre o governo de um homem e de uma mulher, Dilma recuou de sua posição sobre o aborto na primeira ameaça de perder votos de parte dos evangélicos e dos católicos. Não hesitou em assinar uma carta comprometendo-se a não alterar a legislação do aborto nem “promover nenhuma iniciativa que afronte a família”. A descriminalização do aborto tem sido uma luta histórica das feministas brasileiras.
Completado o percurso, não há nada que nos esclareça se faz alguma diferença ter uma mulher – por ser mulher – na presidência do Brasil. O tratamento estapafúrdio do feminino – e o que Lula e os marqueteiros fizeram da mulher que é Dilma Rousseff, assim como o que ela deixou fazer consigo mesma – só nos revelam que foi uma campanha de baixo nível – em todos os sentidos. Resta-nos torcer que a indigência dos argumentos sobre o feminino seja apenas obra de marqueteiros, não crença real de quem tem a tarefa de comandar o país. Em certo momento, juro, temi topar com algum slogan do tipo “Serra é de Marte, Dilma é de Vênus”. Por sorte, acabou. E agora, talvez, possamos descobrir quem é esta mulher chamada Dilma Rousseff.
Tomara que a gente goste.
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