O novo romance de José Saramago, Caim (Companhia das Letras, 176 páginas, R$ 36), já chega aos sites e às livrarias abençoado pela mais eficiente estratégia de marketing: a controvérsia religiosa. O livro inocenta o fratricida Caim e transfere a culpa a Deus. Nada mais lucrativo que irritar sacerdotes. É um hábito arraigado de Saramago, intelectual português de 86 anos que professa a fé marxista desde quase bebê.
Ele não perde a ocasião para botar lenha na fogueira verbal da Inquisição, para nela arder gostosamente. Na quarta-feira dia 14, em Roma, onde participou de um colóquio, Saramago chamou Josef Ratzinger, o papa Bento XVI, de cínico: “Que Ratzinger tenha a coragem de invocar Deus para reforçar seu neomedievalismo universal, um Deus que jamais viu, com o qual nunca se sentou a tomar um café, demonstra apenas o absoluto cinismo intelectual da personagem”. A declaração bombástica serviu como pré-lançamento de Caim.
O livro marca a volta do autor à pregação ateísta, agora que o gênero está em moda, com os ensaios de Richard Dawkins e Daniel Dennett. A vantagem de Saramago sobre esses pensadores é artística: o ficcionista diverte com suas histórias e pilhérias. Em 1991, ele arrancou o filho de Deus da cruz e o trouxe de volta ao chão com o romance O evangelho segundo Jesus Cristo. A Igreja Católica protestou contra a livre interpretação do Novo Testamento feita por Saramago. Sete anos depois, ele ganharia o Prêmio Nobel de Literatura.
Caim reflete a fase tardia do escritor. Trata-se do décimo sexto livro de ficção de sua carreira, iniciada em 1947 com o romance Terra do pecado. Hoje, o escritor goza da liberdade da “pós-existência” que ele decretou há dois anos, quando descobriu que estava com câncer. De lá para cá, abriu e fechou um blog (O caderno, lançado em livro) e resolveu falar o que pensa, como se todo o ruído que produzira antes não houvesse bastado. O resultado está no romance A viagem do elefante, de 2008, e agora em Caim: a narração ganhou em sarcasmo, erotismo e crueza. O autor se despiu do costumeiro barroquismo para adotar a forma direta do relato de viagem, sem desviar das cenas de sexo e da brutalidade.
Caim é um livro que tanto faz rir quanto pode provocar indignação em almas religiosas. A narrativa se organiza como uma novela de andanças no espaço-tempo. O personagem-título viaja em zigue-zague por episódios do Velho Testamento, dos Jardins do Éden à Arca de Noé, visitando a destruição de Sodoma e Gomorra, os sofrimentos de Jó, o Bezerro de Ouro e a Torre de Babel.
A história é conhecida: Caim matou o irmão Abel por ciúme de Deus, que aceitou a oferenda deste e desprezou a daquele. O assassino é estigmatizado por um sinal na testa e condenado por Deus a viver e errar mundo afora. Em vez do apólogo moral, o narrador expõe com sarcasmo as reações do anti-herói às atrocidades divinas. A história corre ao ritmo dos ataques de Caim a Deus – nomes que Saramago grafa com minúsculas. Caim se diverte como um pícaro. Trai, mata e faz sexo com todas as mulheres que encontra. Vira amante da rainha Lilith e não poupa nem a idosa mulher de Noé, com quem se acasala na Arca. Tudo é possível, pois o culpado é Deus – ou melhor, “deus”.
O leitor pode ouvir a risada rude do camponês nascido no Ribatejo acostumado à prática da blasfêmia em trechos como este diálogo em que Caim responde ao desprezo de Deus: E tu quem és para pores à prova o que tu mesmo criaste, Sou o dono de todas as coisas, E de todos os seres, dirás, mas não de mim nem da minha liberdade, Liberdade para matar, Como tu foste livre para deixar que eu matasse a Abel quando estava na tua mão evitá-lo, bastaria que por um momento abandonasses a soberba da infalibilidade que partilhas com todos os outros deuses, bastarias que por um momento fosses realmente misericordioso, que aceitasses a minha oferenda com humildade, só porque não deverias atrever-se a recusá-la, os deuses, e tu como todos os outros, têm deveres para com aqueles a quem dizem ter criado. Os versículos satânicos de Saramago são uma prova de seu atual bom humor. Se fosse filmado, Caim soaria tão sacrílego e quase tão hilariante quanto um velho filme da trupe Monty Python. Saramago finalmente abraçou o seu tempo.
Ele não perde a ocasião para botar lenha na fogueira verbal da Inquisição, para nela arder gostosamente. Na quarta-feira dia 14, em Roma, onde participou de um colóquio, Saramago chamou Josef Ratzinger, o papa Bento XVI, de cínico: “Que Ratzinger tenha a coragem de invocar Deus para reforçar seu neomedievalismo universal, um Deus que jamais viu, com o qual nunca se sentou a tomar um café, demonstra apenas o absoluto cinismo intelectual da personagem”. A declaração bombástica serviu como pré-lançamento de Caim.
O livro marca a volta do autor à pregação ateísta, agora que o gênero está em moda, com os ensaios de Richard Dawkins e Daniel Dennett. A vantagem de Saramago sobre esses pensadores é artística: o ficcionista diverte com suas histórias e pilhérias. Em 1991, ele arrancou o filho de Deus da cruz e o trouxe de volta ao chão com o romance O evangelho segundo Jesus Cristo. A Igreja Católica protestou contra a livre interpretação do Novo Testamento feita por Saramago. Sete anos depois, ele ganharia o Prêmio Nobel de Literatura.
Caim reflete a fase tardia do escritor. Trata-se do décimo sexto livro de ficção de sua carreira, iniciada em 1947 com o romance Terra do pecado. Hoje, o escritor goza da liberdade da “pós-existência” que ele decretou há dois anos, quando descobriu que estava com câncer. De lá para cá, abriu e fechou um blog (O caderno, lançado em livro) e resolveu falar o que pensa, como se todo o ruído que produzira antes não houvesse bastado. O resultado está no romance A viagem do elefante, de 2008, e agora em Caim: a narração ganhou em sarcasmo, erotismo e crueza. O autor se despiu do costumeiro barroquismo para adotar a forma direta do relato de viagem, sem desviar das cenas de sexo e da brutalidade.
Caim é um livro que tanto faz rir quanto pode provocar indignação em almas religiosas. A narrativa se organiza como uma novela de andanças no espaço-tempo. O personagem-título viaja em zigue-zague por episódios do Velho Testamento, dos Jardins do Éden à Arca de Noé, visitando a destruição de Sodoma e Gomorra, os sofrimentos de Jó, o Bezerro de Ouro e a Torre de Babel.
A história é conhecida: Caim matou o irmão Abel por ciúme de Deus, que aceitou a oferenda deste e desprezou a daquele. O assassino é estigmatizado por um sinal na testa e condenado por Deus a viver e errar mundo afora. Em vez do apólogo moral, o narrador expõe com sarcasmo as reações do anti-herói às atrocidades divinas. A história corre ao ritmo dos ataques de Caim a Deus – nomes que Saramago grafa com minúsculas. Caim se diverte como um pícaro. Trai, mata e faz sexo com todas as mulheres que encontra. Vira amante da rainha Lilith e não poupa nem a idosa mulher de Noé, com quem se acasala na Arca. Tudo é possível, pois o culpado é Deus – ou melhor, “deus”.
O leitor pode ouvir a risada rude do camponês nascido no Ribatejo acostumado à prática da blasfêmia em trechos como este diálogo em que Caim responde ao desprezo de Deus: E tu quem és para pores à prova o que tu mesmo criaste, Sou o dono de todas as coisas, E de todos os seres, dirás, mas não de mim nem da minha liberdade, Liberdade para matar, Como tu foste livre para deixar que eu matasse a Abel quando estava na tua mão evitá-lo, bastaria que por um momento abandonasses a soberba da infalibilidade que partilhas com todos os outros deuses, bastarias que por um momento fosses realmente misericordioso, que aceitasses a minha oferenda com humildade, só porque não deverias atrever-se a recusá-la, os deuses, e tu como todos os outros, têm deveres para com aqueles a quem dizem ter criado. Os versículos satânicos de Saramago são uma prova de seu atual bom humor. Se fosse filmado, Caim soaria tão sacrílego e quase tão hilariante quanto um velho filme da trupe Monty Python. Saramago finalmente abraçou o seu tempo.
O mais novo e último, porque ele falceu
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