A Aids que tanto assustou e matou a geração sexualmente ativa nos anos 80 e 90 parece ser coisa do passado. Os atuais portadores do HIV têm acesso gratuito ao coquetel de antiretrovirais capaz de manter o vírus sob controle. Entre os beneficiados pelo avanço da medicina no combate à Aids estão as herdeiras da geração punida pela onda inicial da doença. As “herdeiras” são os bebês nascidos soropositivos. Elas cresceram. São jovens e adolescentes no início da vida sexual, passíveis dos mesmos erros dos demais de sua geração: não usar preservativos durante o sexo e, silenciosamente, espalhar o vírus, que não tem cura e pode ser fatal. O alerta é da médica Yara Lúcia Furtado de Melo, especialista em patologia cervical e vulvar do Instituto de Ginecologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e do Hospital Universitário Gaffrée e Guinle, referência para tratamento do HIV no Rio de Janeiro. Aids e outras doenças sexualmente transmissíveis estarão em foco no 14º Congresso Mundial de Patologia Cervical, que será realizado no Rio de Janeiro, entre os dias 4 e 7 de julho.
Yara faz atendimento ambulatorial na UFRJ. Atende centenas de mulheres todos os anos. O que ela revela nessa conversa com o 7×7 não está baseado em estatísticas, mas na realidade do dia-a-dia do atendimento médico.
Mulher7x7 – O que as estatísticas indicam sobre a contaminação por HIV entre jovens?
Yara Lúcia Furtado de Melo – Sou muito rigorosa com estatísticas por isso não vou citar sem conferir, mas eu trabalho muito com o HIV de forma indireta. No atendimento de pacientes com câncer de colo de útero eu acabo encontrando com essas mulheres soropositivas. A demanda nesses lugares está concentrada. É uma amostra viciada, então, o comum é ter mulheres com HIV. Quem não tem é exceção. Mas, no consultório, onde recebo pacientes recomendadas de médicas infectologistas conhecidas, as moças são das classes A e B, e também estão contraindo HIV. O que eu percebo é um aumento de casos de HIV entre mulheres. Muitas vezes, nas classes mais carentes, o contágio vem da desinformação. Entre as mais abastadas é o excesso de confiança no namorado, na relação. O preservativo é negociado, quando não deveria. Para o HIV, o preservativo é 100% de proteção, o que já não acontece com o vírus HPV.
Está todo mundo abrindo mão do preservativo?
Eu acho que as classes A e B não acreditam que haja HIV circulando entre eles. Confiam demais. É um erro. Eu percebo que entre as famílias mais ativas, mais participativas, em que o tema sexo é conversado com mais liberdade, a consciência é maior. As meninas dizem, na frente das mães, que usam camisinha sempre, com firmeza. Quando não tem bloqueio na conversa, facilita a boa conduta dos jovens. Já entre as classes C e D há muito desconhecimento, falhas. Na UFRJ, já observei casos de câncer de colo em jovens com menos de 25 anos, o quer não é comum, tanto que a recomendação é rastrear a partir de 25 anos. Mas só depois de fazer a biopsia descubro que elas são soropositivas, o que explica a presença precoce do câncer. As pacientes sabiam e não tinham me informado. O câncer de colo é uma das doenças definidora da Aids. Se ele existe, é o início da doença. Estou deparando com casos assim, de jovens sem maturidade, que relutam em acreditar no perigo do HIV e também na possibilidade de contrair a doença. Jovens têm dificuldade para acreditar em duas coisas: que ficarão velhos e que podem adoecer.
E a geração que já nasceu portadora de HIV? Tem um comportamento mais consciente?
Essas meninas estão crescendo, têm entre 16 e 18 anos e estão iniciando sua vida sexual. Tem um trabalho muito bonito sendo desenvolvido com alguns grupos para pesquisa, tanto na UFRJ como o Gaffrée. Eu atendi algumas. Como jovens, às vezes usam camisinha, às vezes não. Às vezes contam para o parceiro, às vezes não. Varia muito, o que é preocupante. Muitas perderam a mãe para a Aids, são criadas por outras pessoas, talvez isso prejudique as conversas sobre a vida sexual, a conscientização. Fiquei impressionada. É verdade que o coquetel de remédios deixa os pacientes bem. Eu tenho pacientes que estão ótimas. O Ministério da Saúde fornece o remédio. Todo mundo tem acesso. A diferença entre as classes sociais é a qualidade de vida. Quem tem mais dinheiro come melhor, faz exercícios. Mas eu aviso no consultório, as meninas têm que ter medo do HIV. É mais fácil impedir a contaminação da doença do que conviver com o vírus depois. Os meninos vão ter a primeira relação sexual, a menina é virgem e aí acreditam que está tudo bem. Pode não estar.
A senhora disse que o preservativo não protege 100% contra outro vírus, o HPV. Então quase todo mundo vai pegar?
A maior parte das mulheres está se contaminando com HPV nos primeiros três anos da relação sexual. É fato, 80% vão se contaminar porque a camisinha só protege uns 70%. O HPV é uma epidemia, está muito prevalente. Ele passa pelo atrito de pele. E no homem não há sinais. É muito raro câncer de pênis provocado pelo HPV. Já o câncer de colo de útero tem sempre HPV envolvido. Mas não é qualquer HPV. Existem mais de 120 tipos de HPV, 15 são indutores de câncer, sendo dois deles mais comum, e a vacina protege contra esses dois tipos oncogênicos. Os HPVs que provocam verrugas são de baixo risco. A verruga é uma lesão benigna e não evoluiu para câncer. Para ir da contaminação por HPV para o câncer, leva uns dez anos e, mesmo assim, é preciso não fazer nada, não fazer preventivo, não cuidar. Porque, no preventivo, identificamos a lesão precursora do câncer, que dá para tratar. A maior parte das mulheres que contrai HPV se livra do vírus. Uma amiga minha chama de gripe ginecológica. E dos casos que persistem como crônicos só 1% vira câncer.
A vacina já foi muito testada?
Sim. Tem a vacina bivalente que protege contra os dois tipos que provocam câncer e outra quadrivalente que protege também contra os dois tipos mais comuns que provocam verrugas. Não se sabe ao certo por quanto tempo a resposta imunológica funciona. O fabricante fala em 5 anos. Outros estudos em oito. Por isso recomendamos a vacina a partir dos 12, porque pega o início da vida sexual. A vacina não tem vírus vivo. De qualquer forma, só teríamos resultado sobre o impacto na mortalidade por câncer de colo no Brasil daqui a 30 anos. O que sabemos é que países como Austrália e Canadá, que já vacinaram a população, têm índices baixíssimos de morte por câncer de colo de útero, enquanto o Brasil tem 20 mil casos por ano e registrou quase 5 mil mortes em 2008.
Uma pessoa pode entrar em contato com o vírus HIV e não se contaminar? Livrar-se dele, como acontece como HPV?
Nunca foi provado, mas supõe-se que algumas pessoas conseguem não se contaminar. Na relação vaginal, a chance de contágio é de 2%, depende da imunidade da pessoa e também da carga de vírus que o outros vai passar. Um paciente tratado transmite menos. Muitas mulheres portadoras do HIV, quando são mais velhas, até abrem mão do sexo, numa demonstração de consciência bonita. Mas isso não acontece entre os jovens. Eles estão começando a experimentar
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