Na relação "mãe e filha" tudo é muito intenso: tanto a dedicação e o carinho, quanto as lutas e os conflitos. No relacionamento da mulher com a figura materna existe uma complexidade psíquica que envolve paixão, fusão, cumplicidade, maternidade, separação, rivalidade, inveja, dependência, cobranças, etc. Nos contos de fadas temos um registro disso, mas não apenas em relação aos conflitos e dificuldades, como também a forma como se desenrolam as soluções dos dilemas entre gerações.
É comum vermos nas heroínas mais famosas como Cinderela, Branca de Neve, A Bela Adormecida e Rapunzel disputas e conflitos com a mãe ou a madrasta. No entanto, é por meio destes desentendimentos que a heroína amadurece e se desenvolve como mulher.
"É comum vermos nas heroínas mais famosas como Cinderela, Branca de Neve, A Bela Adormecida e Rapunzel disputas e conflitos com a mãe ou a madrasta. No entanto, é por meio destes desentendimentos que a heroína amadurece e se desenvolve como mulher."
As histórias que mostram a relação "mãe e filha" nos dizem que a mulher desenvolve sua personalidade e sua identidade, enquanto ser feminino, a partir de sua relação com a mãe. E quando a figura materna é ausente (seja por morte ou ausência de sentimentos), essa mulher acaba desenvolvendo grande insegurança em relação a quem é, caindo muitas vezes na armadilha do animus (lado masculino da mulher) e se igualando a ele. Ao se igualar ao animus, a mulher lesa suas relações, pois esse masculino interior tende a afastá-la de sua própria vida e levá-la à solidão.
Mas, antes de iniciar a análise dessa relação tão delicada, é necessário observar a dinâmica da menina, desde sua infância.
Na primeira infância, a maioria das crianças (tanto meninas quanto meninos) vive em uma relação de identificação arcaica com a mãe. Se observarmos as meninas, pode-se notar que falam com suas bonecas assim como suas mães falam com ela, chegando a imitar a voz da mãe.
Nessa fase, a brincadeira de "ser mãe", feita com as bonecas, impera em boa parte das meninas. Ao crescerem, as que tiveram um modelo de mãe "positivo" costumam imitá-la. De acordo com a psicoterapeuta analítica alemã Marie-Louise Von Franz, isso traduz um sentimento de que a vida decorre em paz e sem conflitos, no entanto, ao mesmo tempo é ruim para o processo de individuação da menina, pois assim ela fica incapaz de tornar real sua diferença em relação à mãe.
Com isso, temos uma incógnita nessa questão: se não há uma mãe por perto a mulher pode ficar insegura em relação à feminilidade, além de virar presa fácil do seu animus. Mas se tiver uma mãe muito boa, pode se tornar apenas uma extensão dela e das outras ancestrais maternas. Como, então, resolver esse impasse?
MALDADE DA MADRASTA INCENTIVA HEROÍNA A AMADURECER
Em geral, os contos de fadas nos quais há uma heroína iniciam-se com o nascimento da princesa e a subsequente morte da mãe, acompanhada da chegada de uma madrasta ou do aparecimento de uma bruxa. Nas histórias famosas como A Branca de Neve e Cinderela, temos o clássico tema da madrasta; em A Bela Adormecida e Rapunzel aparece uma bruxa que persegue a heroína.
Em termos psicológicos, o papel da madrasta e o da bruxa é o de enfatizar o lado negativo da maternidade. Ao perseguir a heroína e quase levá-la à morte, essa mãe negativa dá inicio a uma ação que desencadeia em um desenvolvimento da personalidade feminina mais profunda.
"Em termos psicológicos, o papel da madrasta e o da bruxa é o de enfatizar o lado negativo da maternidade. Ao perseguir a heroína e quase levá-la à morte, essa mãe negativa dá inicio a uma ação que desencadeia em um desenvolvimento da personalidade feminina mais profunda."
Vemos esse tipo de "maldade" materna na natureza. A raposa morde o filhote quando este atinge certa idade e precisa se tornar independente e assumir a sua liberdade. Mães que possuem um instinto materno ainda em bom funcionamento afastam os filhos que se agarram demais a ela, como um animal selvagem. No entanto, vale ressaltar que trata-se de uma maldade instintiva positiva. O que acontece é que atualmente, em nossa sociedade pautada pelo principio do patriarcado, esse comportamento feminino é considerado imoral e por essa razão temos tantos adultos infantilizados e ainda grudados na barra da saia de suas mães.
POR QUE GERALMENTE AS MÃES MORREM NOS CONTOS DE FADAS?
Hoje as mães têm um senso de dever em relação aos filhos muito alto. Elas pensam apenas como a "boa mãe", que mais se assemelha a uma reação do animus da mulher, com suas regras e julgamentos, do que com uma reação adequada e instintiva de seu feminino.
Nos contos de fadas temos a figura da "boa mãe" que dá a heroína lições, amor e calor humano. Em Cinderela, a "mãe positiva" oferece conselhos para a Gata Borralheira ser uma pessoa boa, e quando ela morre cresce uma árvore sobre o seu túmulo, que auxilia a menina. No conto russo A Bela Wassilissa, a mãe morre e deixa como herança para a filha uma boneca que também ajuda a garota. O que esses contos nos dizem é que sempre fica uma herança no espírito da mulher, que provém de sua "mãe boa". A lição disso é que a mãe não deve se preocupar em assumir o lado negativo da maternidade, pois todo o carinho e acolhimento dado à filha lhe servirão de guia em sua jornada, lhe auxiliando.
"O que esses contos nos dizem é que sempre fica uma herança no espírito da mulher, que provém de sua "mãe boa". A lição disso é que a mãe não deve se preocupar em assumir o lado negativo da maternidade, pois todo o carinho e acolhimento dado à filha lhe servirão de guia em sua jornada, lhe auxiliando."
No entanto, essa mãe boa costuma morrer ou desaparecer da narrativa dos contos de fadas. Isso significa que a filha psicologicamente não deve mais se identificar com a figura materna, ainda que a relação essencial positiva entre as duas exista. A "morte" da mãe boa é o início do processo de individuação da mulher.
Os contos de fadas nos mostram que a mulher deve procurar sua forma pessoal e única de viver sua vida. Ela precisa aprender a impor limites entre o que é dela e o que é de sua mãe. A psicoterapeuta Von Franz aponta que, psicologicamente, as mulheres - bem mais do que os homens - tendem a se identificar com os modelos de seu próprio sexo. Por essa razão, a moda, por exemplo, é dirigida de forma massiva para a mulher, pois esta é muito mais voltada para as relações e a necessidade de ser aceita. Por essa razão, mais que os homens, elas mulheres sofrem para se diferenciarem de suas mães e do que a sociedade dita em termos de comportamento e padrão estético.
Na prática clínica, essa fusão mãe e filha é muitas vezes o cerne de conflitos neuróticos de mulheres. A morte da boa mãe nos contos significa muito não só para a filha, mas também para a mulher. E essa perda sugere, simbolicamente, que a mãe deve retirar as projeções que fez em sua filha e assumir sua própria criatividade e poder feminino. Afinal, muitas mulheres projetam aquilo que não puderam ser em suas filhas e assim deixam de viver seu potencial criativo.
MADRASTA SIMBOLIZA RUPTURA NECESSÁRIA COM A MÃE
Nos contos de fadas, a entrada da madrasta e da bruxa que separa a filha da família de origem mostra que essa ruptura é necessária e que a mulher, para seu próprio desenvolvimento, precisa suportar essa projeção da mãe terrível e negativa nela, e não se sentir culpada e péssima mãe no futuro.
Na vida real, a mulher, quando começa a se separar psicologicamente de sua mãe e também de sua família de origem, tende a se tornar irritada e agressiva, passando a ver a figura materna como uma bruxa malvada. Essa agressividade é natural e compreensível, pois ela ainda é inconsciente de sua própria personalidade.
A mãe, ao assumir seu papel negativo - como mostram os contos de fadas na figura da bruxa ou madrasta - não somente auxilia a filha em seu desenvolvimento, como ela mesma se desenvolve e amplia a sua consciência feminina.
"A mãe, ao assumir seu papel negativo - como mostram os contos de fadas na figura da bruxa ou madrasta - não somente auxilia a filha em seu desenvolvimento, como ela mesma se desenvolve e amplia a sua consciência feminina."
A psicoterapeuta Von Franz diz que quando o gérmen mais íntimo da personalidade humana começa a se desenvolver, ele suscita uma irritação no meio em que vive. E essa percepção perturba a ordem instintiva inconsciente da família. Para o psiquiatra Carl Jung, é como se um rebanho de carneiros percebesse que um dos seus membros deseja seguir seu próprio caminho.
Por essa razão, quando o conflito "mãe e filha" se instala, é um momento delicado, mas muito proveitoso, no qual ambas podem parar de projetar seu "Self feminino" uma na outra e assumir a sua individualidade.
CONTOS ENSINAM BENEFÍCIOS DO LADO NEGATIVO DA MATERNIDADE
Os contos de fadas femininos enfatizam que a heroína deve suportar o sofrimento e as dificuldades. Ela não luta com dragões e bruxas malvadas, apenas sofre e se aprofunda na dor e no conflito em busca de autoconhecimento. Essa é a força do feminino que a mulher perdeu na ânsia frenética em busca de realização exterior. É uma atitude de grande confiança na vida, um processo de incubação mesmo.
A experiência com os contos de fadas nos diz que a força motriz para o desenvolvimento feminino é o mal, ou seja, o lado negativo da maternidade. Se uma mulher não passa por esse estágio com sua mãe, ficará um buraco em sua expressão feminina e ela desenvolverá uma profunda insegurança quando for mãe. No momento em que precisar usar a negatividade na relação para que os filhos cresçam, poderá recorrer a livros e receitas engessadas, que lhe dizem que isso é errado e politicamente incorreto. Essa mulher não saberá dizer não aos filhos ou impor limites e, o que é pior, quando quiser fazer isso, será com uma força desnecessária e brutal.
Portanto, resumidamente, os contos de fadas nos dizem que uma mãe deve mostrar seus aspectos negativos para que o filho cresça. Se expor apenas o lado positivo, a cria terá dificuldade em amadurecer.
"Portanto, resumidamente, os contos de fadas nos dizem que uma mãe deve mostrar seus aspectos negativos para que o filho cresça. Se expor apenas o lado positivo, a cria terá dificuldade em amadurecer."
A leitura e a compreensão dos contos de fadas podem resgatar essa verdade psicológica feminina que foi sufocada pelas leis e normas de condutas patriarcais. Ao invés de se culpar, a mulher precisa aceitar a si mesma e também a sua natureza dual. Ao invés de normas de condutas e proibições para as mães, é necessário trazer para as mulheres a educação psicológica, para que ocorra a aceitação de sua sombra feminina e para que ela se torne sua aliada, e não sua inimiga.
Se você já se perguntou alguma vez porque tantas personagens da Disney não tem mãe ou porque a mãezinha querida aparece e logo morre, existe uma explicação muita lógica – e não é só para lhe reduzir às lágrimas.
"Vou lhe contar duas histórias para explicar as razões. Eu nunca converso sobre isso, mas vou falar agora”, disse Don Hahn, produtor executivo de "Malévola" em uma entrevista recente à revista Glamour.
"Uma das razões é bem prática, porque os filmes duram 80 ou 90 minutos, e os filmes Disney tem a ver com crescer e amadurecer. Tem a ver aquele dia na sua vida em que você tem que assumir responsabilidades. Simba fugiu de casa mas teve que voltar. Resumindo, é bem mais rápido as personagens crescer quando os pais não estão na trama. A mãe de Bambi é morta, então ele precisa amadurecer. Bella só tem o pai, mas ele se perde, então ela tem que assumir as responsabilidades. É uma técnica que ajuda a resumir a história”
Hahn, que também trabalhou em clássicos da Disney como "A Bela e a Fera" e "O Rei Leão", ofereceu outra razão mais deprimente e Freudiana para explicar a falta de mães nas histórias da Disney. No começo da década de 40, Walt Disney comprou uma casa para seus pais.
“Ele pediu que os funcionários do estúdio fossem até a casa para consertar o aquecedor, mas quando seu pai e sua mãe se mudaram para a casa, o aquecedor teve um vazamento de gás e a sua mãe morreu”
“A governanta chegou na manhã seguinte e arrastou os pais dele para o jardim na frente da casa. O seu pai estava muito mal e foi levado para o hospital, mas a sua mãe morreu”, disse Hahn.
Segundo Hahn, Disney nunca falou sobre a morte da mãe, e naquela época ninguém fazia comentários sobre o ocorrido. “Ele nunca falou sobre o que havia acontecido porque ele sentia-se culpado por ter alcançado tanto sucesso que o levou a dizer, ‘Deixe que eu compre uma casa para vocês’. Todo filho sonha em comprar uma casa para os pais e por uma fatalidade – da qual ele não teve culpa – os funcionários do estúdio não sabiam como fazer o conserto”, disse Hahn. “Há uma teoria, e eu não sou psicólogo, mas aquilo consumia ele. A ideia de que ele havia contribuído para a morte da mãe era muito trágico”.
E apesar das explicações de Hahn fazerem sentido, outros perguntam se Disney e outros criadores de filmes de animação infantis não teriam “objetivos inconscientes” mais sinistros para não incluírem mães em seus filmes. Em junho desse ano, Sarah Boxer escreveu na revista Atlantic:
Será que o objetivo inconsciente desses filmes sem mães é de mascarar a realidade? Será que querem encorajar os homens a serem mais maternais? Ou quem sabe sugerir que os pais seriam melhores que as mães se tivessem esse chance? Talvez propor que o mundo seria melhor sem mães? Ou pode ser apenas um caso sério do que a psicanalista Karen Horney chama de “inveja do útero”. Ou talvez uma expressão da angústia primordial que a psicanalista Melanie Klein descreve como “as fantasias e pulsões incontrolavelmente invejosas e destrutivas contra os seus da sua mãe”.
Referências bibliográficas:
- KAWAI, H. A Psique Japonesa - Grandes temas dos contos de fadas japoneses. São Paulo: Paulus, 2007.
- VON FRANZ, M. L. O feminino nos contos de fada. Vozes. São Paulo: 2010.